Nós entendemos, Al Gore
Ryan Barbosa
Nos últimos dias, foi muito comentado na internet um trecho do documentário alemão "O Fórum", que trata dos bastidores das reuniões do Fórum Econômico Mundial de Davos de 2019. O trecho em si é uma conversa informal entre o presidente Jair Bolsonaro e o ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore.
Albert Arnold "Al" Gore Jr. Ou simplesmente Al Gore, para aqueles que não o conhecem, foi vice-presidente dos Estados Unidos durante o governo Bill Clinton. Ele é uma referência no ativismo ecológico, ganhou o Nobel da Paz em 2007 "pelos seus esforços na construção e disseminação de maior conhecimento sobre as alterações climáticas induzidas pelo homem e por lançar as bases necessárias para inverter tais alterações". Além disso, o mesmo produziu o documentário "Uma verdade Inconveniente", vencedor do Oscar de Melhor Documentário em 2007, que trata dos perigos das mudanças climáticas para o mundo.
A conversa foi bastante ridicularizada (com razão) pelos internautas, porém, ao analisar toda a conversa, é possível perceber a postura do Bolsonaro. O diálogo, completamente constrangedor e vergonhoso, diz muito sobre a pessoa a frente da nação brasileira.
No início, houve uma tentativa de "quebrar o gelo" por parte de Al Gore, que, além de ter falhado, deixou a conversa em um tom um tanto constrangedor. O ex-vice-presidente se apresenta como sendo um grande amigo de Alfredo Sirkis, grande ativista e político brasileiro na questão ambiental, tendo sido um dos fundadores do Rede Sustentabilidade e do Partido Verde. Bolsonaro o responde afirmando que foi "inimigo do Sirkis na luta armada", o que é mentira, haja vista que Sirkis, um dos participantes da luta armada contra a ditadura militar, saiu exilado do Brasil em 1973, quando o atual presidente ainda era um adolescente de 16 anos.
Bolsonaro, então, afirma que a história do período militar no Brasil foi "mal contada", porém a verdade sempre tende a aparecer, apelando novamente para o "passado mítico", como explicado por Jason Stanley, em "Como Funciona o Fascismo". Essa postura do presidente é até curiosa, especialmente porque a vasta maioria das pessoas que cometeram atrocidades durante a ditadura buscam afastar sua imagem do período sangrento, enquanto o Bolsonaro, que sequer teve uma participação na repressão, busca ao máximo se aproximar e exaltar esse período.
Al Gore comenta que todos estão profundamente preocupados com a Amazônia, e ainda se desculpa por trazer a questão num momento informal, e somente o fazia pois estava realmente preocupado com o que estava ocorrendo. Era esperado que Bolsonaro lhe desse uma resposta de um líder de nação, que dissesse estar fazendo o possível e o impossível para conter aquela destruição e para responsabilizar os culpados. Entretanto, Al Gore recebe a resposta que menos esperava, a de um ruralista.
Bolsonaro lhe responde que a Amazônia não poderia ser esquecida, frase que todos concordam sem nem pensar duas vezes, e complementa, de forma contraditória que “temos muitas riquezas. E gostaria muito de explorá-la com os Estados Unidos". Nesse momento da conversa, todos que estão assistindo ao documentário sentem a súbita vergonha de possuírem um chefe de Estado subserviente, não ao governo dos Estados Unidos, mas à figura de Donald Trump, principal sustentáculo dos ideais bolsonaristas no exterior. Al Gore, obviamente consternado com a resposta, limita-se a dizer que não entendeu o que o brasileiro quis dizer. Infelizmente, todos nós, brasileiros, entendemos perfeitamente o que ele queria dizer.
Não é segredo para ninguém que o governo Bolsonaro não possui políticas ambientais, nem planos ou metas concretas para o meio ambiente, apenas deixa as coisas acontecerem. A sua eleição não se deu apesar de seu discurso anti-ambientalista e com falas preconceituosas contra povos nativos e quilombolas, ele foi escolhido justamente por causa dele. Não podemos esquecer do seu Ministro do Meio Ambiente, talvez o ministro que melhor cumpre a função para o qual foi escolhido, de desregulamentar e simplificar as leis ambientais, de "passar a boiada".
Bolsonaro finaliza o diálogo com "Conheço o senhor, não somos inimigos. Precisamos conversar". Uma fala que poderia ter saído de um mafioso do filme "O Poderoso Chefão", de Francis Coppola, mas que saiu da boca de um presidente da república. E não em um sentido que seria talvez o esperado, de unirem forças para salvar a Amazônia, mas sim de se unirem para explorá-la.
Esse diálogo só confirma e reafirma a dinâmica do governo Bolsonaro. Mentiras, visões deturpadas da realidade, desprezo pelo meio ambiente, pelas minorias e pelos cientistas, a subserviência ao governo Trump, a completa falta de análise e capacidade cognitiva intelectual do alto escalão e, acima de tudo, a marcha rumo ao retrocesso.
Quando analisamos todo o atual governo, é até difícil apontar qual das áreas é a pior, em qual serão deixadas as maiores sequelas, em qual teremos o maior trabalho para reverter todos os danos. Muitos afirmam que será a educacional, outros dizem que será a de saúde, econômica ou até a própria situação democrática. Discordo respeitosamente de todos, a área mais afetada será, sem dúvidas, a ambiental. Talvez nunca será possível reconstruir o que foi perdido, isto é, se ainda sobrar algo para ser reconstruído.
Esse texto não reflete a opinião do ProWorld Brasil.